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Touradas e coisas piores


14 de Fevereiro de 2011

A propósito da anterior crónica (sobre as inclinações "culturais" da Câmara de Vinhais, que decidiu iniciar os seus munícipes nos prazeres "exquis" da brutalidade e tortura pública de animais) escreve-me um leitor dizendo, em abono da tourada, que Hemingway e Picasso gostavam do espectáculo. Não só eles, acrescento eu, e de touradas e coisas piores...

Escritores e artistas raramente são exemplos morais recomendáveis. Céline, escritor maior (mesmo não sendo a literatura um campeonato) que Hemingway, partilhou com Hitler, além do desprezo pelas mulheres, o gosto pela carnificina de judeus, e Picasso, juntamente com as touradas, teve outra devoção não menos sangrenta, Estaline.

A História está cheia de obras sensíveis e generosas, às vezes de grande riqueza moral, realizadas por gente feia, porca, má ou nem por isso. E se o desprezível dr. Destouches, dito Céline, escreveu a admirável "Viagem ao fim da noite" mas também obras imundas e carregadas de ódio, em outras é difícil encontrar traço do ser humano existente por trás delas (quem dirá que por trás da belíssima Catedral de Brasília está um devoto, também ele, de Estaline?)

Não é por Hemingway e Picasso se terem divertido (terem sido capazes disso) com a agonia e morte de um animal que a tourada deixa de ser um espectáculo eticamente condenável. O facto de apreciarem touradas desabona a favor de um e outro, não abona a favor das touradas.






Vinhais merecia muito mais
11 de Fevereiro de 2011

Vinhais merecia mais do que ser metida pela sua Câmara (a martelo, pois que a lamentável coisa nem sequer tem história na região) no retrógrado rol das povoações onde, em pleno século XXI, ainda há quem se divirta com o sofrimento e a tortura de animais.
O brutal e primitivo espectáculo da tourada está em decadência por todo o lado onde ainda penosamente sobrevive, especialmente em Espanha, onde, por razões éticas e civilizacionais, 73 cidades (e regiões inteiras, como a Catalunha e as Canárias) se declararam já antitouradas, e onde a própria TVE as excluiu da programação; igualmente em países para onde Espanha as "exportou", como a Colômbia, o Equador ou a Venezuela, se multiplicam hoje as cidades antitouradas; e o mesmo em França e em Portugal. Entre nós, a primeira cidade antitouradas foi Viana do Castelo, cuja autarquia, porque "o espírito de cidade moderna e progressista deve estender-se ao respeito pelos direitos dos animais", adquiriu a praça de touros local para aí fazer um Centro de Ciência Viva.
É neste contexto civilizacional que Vinhais, onde nunca se haviam realizado touradas antes de a actual Câmara ter promovido uma, decide andar às arrecuas e desacreditar a tradicional Feira do Fumeiro sujando-a com violência e sangue. Tudo, claro, pelos melhores e mais "culturais" motivos, designadamente a "preservação dos bovinos de raça mirandesa" (que nem são próprios para touradas...)








O que pensa um toiro na arena?
10 de Abril de 2010


Em Portugal as touradas continuam a atrair milhares. Há quem aprecie e quem abomine. Interessava saber o que pensam os toiros disto tudo. Mas infelizmente a voz do toiro nunca poderá ser escutada.

Tiago Mesquita (www.expresso.pt)

"O que é que este senhor quer? Anda por aqui a passear-se no cavalo armado em bom e volta e meio vem espetar-me um ferro no lombo. Deve pensar que isto é um restaurante de rodízio à brasileira. Ó amigo isto aqui não é o Gauchão e eu não sou o prato do dia. Seja lá homem e desça daí, vamos tomar um copo e conversamos sobre o assunto..."

"Acho piada quando os aficionados dizem que amam os toiros. Estranha forma de amar. Porque é que não vais fazer isto aos perdigueiros que tens lá em casa? Cria-los, ama-los muito, e depois um dia leva-los até ao Campo Pequeno, convidas os teus amigos e passam a tarde a espetar-lhe ferros nas costas. Pois mas isso já não porque se trata de animais de estimação e tal. E é crime ainda por cima. A velha e gasta teoria de alguns de que podemos maltratar os animais desde que eles sejam criados para o efeito. Alguns até dizem que se não fosse as touradas os toiros bravos já nem existiam. Pois se o homem não existisse a estupidez também não mas assim torna-se difícil e temos de lidar com ela. E não sabia que o senhor Charles Darwin era criador de toiros"

"E são tão paternalistas...este toiro é muito nobre e tem personalidade e mais não sei o quê...deixa-me cá mas é atravessá-lo com uma espada e cortar-lhe uma orelha como fazem as tribos da amazónia que ainda vivem com uma parra a tapar as partes"

" E o homem da corneta? O que é aquilo? Não há por aí nenhuma alma caridosa que lhe pague o conservatório? Ou um sniper da Mossad com o ouvido mais sensível? Se me querem matar ao menos ponham Chopin ou Verdi"

"Pronto já cá faltava o grupinho de meninos armados em rebeldes enfiados em roupa de tamanho 2 números abaixo. E este da frente não se cala com o "é toiro, é toiro" Querias que fosse o quê? Uma perdiz? O que queres tu afinal? Um happy meal? Eu por tenho cara de funcionário do Macdonalds? Já viste algum a raspar com as patas no chão enquanto tira um Sundae de chocolate? E já agora não achas que já comias menos meu badocha? Aposto que há na plateia quem tenha dúvidas de que lado da arena é que está o touro. Eu peso 500 quilos mas tu também deves andar lá perto. Uma consulta no nutricionista e larga o porco preto que qualquer dia só enrolado num cortinado..."

As touradas continuam a fazer parte do quotidiano português. O espectáculo bárbaro de espetar farpas de vários tamanhos num animal parece agradar a muitos à boa maneira de Júlio César, que há quem diga que foi primeiro a lembrar-se de um "entretenimento" do género com o uso de toiros, entre outros igualmente grotescos. O Imperador Cláudio pôs em prática sacrificando-os na Arena. As tradições acabam. E as más devem ser eliminadas. Quando o homem não consegue ou quer o tempo encarregar-se-á de o fazer. Até lá sofre o toiro.

Em Portugal o Marquês de Pombal acabou com os toiros de morte e chegou a proibir as touradas aquando da morte de um nobre (homem entenda-se) na arena. Retomou-se a "tradição" algum tempo mais tarde. Infelizmente.

Fazer sofrer propositadamente uma animal até à sua morte para regozijo de meia dúzia não devia ser permitido em parte alguma. Muito menos num país civilizado.



Leonel Moura




Uma questão de cultura
26 de Março de 2010


A cultura é o mecanismo que nos permite, enquanto espécie, evoluir para lá do lento e aleatório processo da evolução natural. A cultura é também aquilo que, a cada momento, gera o ambiente civilizacional no qual uma determinada comunidade opera. Nessa medida, estando nós globalmente na era da sociedade da informação, muitos grupos humanos continuam a viver na Idade Média ou nos primeiros tempos da modernidade. Basta pensar nos campos de refugiados, nas áreas de grande pobreza e carências de toda a espécie ou nos que vivem sob regimes de base tribal ou assentes no despotismo. E até há quem - caso de algumas remotas tribos da Amazónia -, se mantenha no muito longínquo neolítico.

Mas estes desfasamentos não sucedem só em agrupamentos humanos que, por qualquer motivo, foram marginalizados do processo histórico. No interior da era coabitam outras eras. No tempo presente coexistem tempos passados. Certos rituais, tradições e comportamentos primitivos, apesar de claramente anacrónicos, persistem nas nossas sociedades desenvolvidas. É o caso exemplar das touradas.

Só na aparência se trata de um tema polémico. Na verdade, não há nenhuma polémica, nem nada digno de debate. O assunto é claro e evidente para toda a gente. Trata-se de um ritual retrógrado que não faz qualquer sentido, nem tem nenhuma justificação, na sociedade contemporânea. Recorde-se que já D. Maria II, em meados do século XIX, decretou a sua proibição por considerar "que as corridas de touros são um divertimento bárbaro impróprio de Nações civilizadas". Pelo menos há dois séculos que as touradas são um sinal de atraso e incivilização.

Todas as pseudo discussões sobre a preservação dos touros, se estes sentem dor ou não, a importância económica da atividade, a defesa da tradição, etc., nada acrescentam ao essencial e cristalino. A tourada é um espetáculo selvagem e criminoso. Ponto final parágrafo.

Muitas outras tradições têm sido abandonadas por serem indignas da condição do homem atual. Caminhamos para o reconhecimento dos direitos dos animais. Caminhamos para uma maior consciência da partilha do planeta com outras formas de vida. Caminhamos até para um sentido de cooperação e não de exploração e extermínio das outras espécies e da própria natureza. Os anacronismos que ainda persistem combatem-se com leis civilizadoras assentes, precisamente, na evolução e consenso cultural. Ou seja, a cultura, em sentido lato e específico nas suas várias vertentes humanizadoras, tem nestes assuntos um papel decisivo. É através dela que se promove o esclarecimento, a educação e uma visão mais avançada sobre o tempo em que nos foi dado viver. A cultura não é isenta, nem irresponsável. Estamos todos implicados.

Ora essa responsabilidade não pode deixar de estar presente a nível governativo. Do Ministério da Cultura espera-se um claro empenhamento na modernização geral do País e dos cidadãos. A par do desenvolvimento das novas tecnologias e novas aptidões, com grande incidência nos planos tecnológicos e nos programas dos Ministérios da Ciência e da Economia, seria de esperar uma participação não menos ativa do Ministério da Cultura na qualificação civilizacional dos portugueses. Ora, infelizmente, não é isso que se passa. Portugal não tem tido nenhuma sorte com os sucessivos ministros da cultura.

Ao incluir uma secção especializada dedicada à tauromaquia no recém criado e pomposo Conselho Nacional da Cultura, a Ministra Gabriela Canavilhas mostra, desgraçadamente, que ainda não é desta que temos à frente do ministério alguém que já viva no século XXI. Em vez de contribuir para a evolução positiva do País, com este gesto incongruente a ministra envia sinais de atavismo e tradicionalismo que só podem reforçar ainda mais o nosso atraso.

Não cabe exigir demissões. Esta gente passa e só deixa um rasto de irrelevância. Mas fica claro que continuamos a nada poder esperar de um ministério que devia dar o exemplo e ajudar a melhorar o nível cultural dos portugueses. A cultura, a verdadeira, continuará a ser desenvolvida noutros lugares.